O Victor é um adolescente. Arranjou um emprego no McDonald’s. No McDonald’s trabalham adolescentes. Antes de iniciar o seu trabalho eles são treinados. São treinados, primeiro, a cuidar do espaço em que trabalham: a ordem, a limpeza, os materiais – guardanapos, canudinhos, temperos, bandejas. É preciso não desperdiçar. Depois, são treinados a lidar com os clientes. Delicadeza. Atenção. Simpatia. Sorrisos. Boa vontade. Clientes não devem ser contrariados. Têm de se sentir em casa. Têm de sair satisfeitos. Se saírem contrariados, não voltarão. O Victor aprendeu bem as lições: começou o seu trabalho. Mas logo descobriu uma coisa que não estava de acordo com o aprendido: os adolescentes, fregueses, não cuidavam das coisas como eles, empregados, cuidavam. Tiravam punhados de canudinhos para brincar. Usavam mais guardanapos do que o necessário. Punham as bandejas dentro do lixo. Aí o Victor não conseguiu se comportar de acordo com as regras. Se ele e os seus colegas de trabalho obedeciam as regras, por que os clientes não deveriam obedecê-las? Por que sorrir e ser delicado com fregueses que não respeitavam as regras de educação e civilidade? E ficou claro para todo mundo, colegas e clientes, que o Victor não estava seguindo as lições... O chefe chamou o Victor. Lembrou-lhe o que lhe havia sido ensinado. O Victor não cedeu. Argumentou. Disse de forma clara o que estava sentindo. O que ele desejava era coerência. Aquela condescendência sorridente era uma má política educativa. Era injustiça. Os seus colegas de trabalho sentiam e pensavam o mesmo que ele. Mas eram mais flexíveis... Não reclamavam. Engoliam o comportamento não educado dos clientes-adolescentes com o sorriso prescrito. E o chefe, sorrindo, acabou por dar razão ao Victor. Qual a diferença que havia entre o Victor e os seus colegas? O Victor tem Síndrome de Down.
O Edmar é um adolescente. Calado. Quase não fala. Arranjou um emprego como lavador de automóveis num lava-rápido. Emprego bom para ele porque não é necessário falar enquanto se lava um carro. Mas de repente, sem nenhuma explicação, o Edmar passou a se recusar a trabalhar. Ficava quieto num canto sem dar explicações. O Edmar, como o Victor, tem Síndrome de Down. A “Fundação Síndrome de Down”, que havia arranjado o emprego para o Edmar, foi informada do que estava acontecendo. Que tristeza! Um bom emprego – e parece que o Edmar ia jogar tudo fora. O caminho mais fácil seria simplesmente dizer: “Pena. Fracassamos. Não deu certo. Pessoas com Síndrome de Down são assim...” Mas a equipe encarregada da inclusão não aceitou essa solução. Tinha de haver uma razão para o estranho comportamento do Edmar. E como ele é calado e não explica as razões do que faz, uma das pessoas da equipe se empregou como lavadora de carros, no lava-rápido onde o Edmar trabalhava. E foi lá, ao lado do Edmar, que ela descobriu o nó da questão: o Edmar odiava o “pretinho” – aquele líquido que é usado nos pneus. Odiava porque o tal líquido grudava na mão, não havia jeito de lavar, e a mão ficava preta e feia. O Edmar não gostava que sua mão ficasse preta e feia. Todos os outros lavadores – sem Síndrome de Down – sentiam o mesmo que o Edmar sentia - também eles não gostavam de ver suas mãos pretas e sujas. Não gostavam mas não reclamavam. A solução? Despedir o Edmar? De jeito nenhum! A “lavadora” pôs-se a campo, numa pesquisa: haverá um outro líquido que produza o mesmo resultado nos pneus e que não seja preto? Descobriu. Havia. E assim o Edmar voltou a realizar alegremente o seu trabalho com as mãos brancas. E, graças a ele, e ao trabalho da “lavadora”, todos os outros puderam ter mãos limpas ao fim do dia de trabalho.
Essa é uma surpreendente característica daqueles que têm Síndrome de Down: não aceitam aquilo que contraria o seu desejo e suas convicções. O Victor desejava coerência. Não iria engolir o comportamento não civilizado de ninguém. O Edmar queria ter suas mãos limpas. Não iria fazer uma coisa que sujasse suas mãos. Quem tem Síndrome de Down não consegue ser desonesto. Não consegue mentir. E é por isso que os adultos se sentem embaraçados pelo seu comportamento. Porque os adultos sabem fazer o jogo da mentira e do fingimento. Um adulto recebe um presente de aniversário que julga feio. Aí, com o presente feio nas mãos, ele olha para o presenteador e diz sorridente: “Mas que lindo!” Quem me contou foi o Elba Mantovaneli: ele deu um presente para a Andréa. Mas aquele presente não era o que ela queria! Ela não fingiu e nem se atrapalhou. Só disse, com um sorriso: “Vou dar o seu presente para o Fulano. Ele vai gostar...”
As crianças normais, na escola, aprendem que elas têm de engolir jilós, mandioca crua e pedaços de nabo: coisas que não fazem sentido. Aprendem o que é “dígrafo”, “próclise”, “ênclise”, “mesóclise”, os “usos da partícula se”... Você ainda se lembra? Esqueceu? Mas teve de estudar e responder certo na prova. Esqueceu, por quê? Porque não fazia sentido.
Fazer sentido: o que é isso? É simples. O corpo – sábio – carrega duas caixas na inteligência: a caixa de ferramentas e a caixa de brinquedos. Na caixa de ferramentas estão coisas que podem ser usadas. Não todas, evidentemente. Caso contrário a caixa teria o tamanho de um estádio de futebol. Seria pesada demais para ser carregada. Se vou cozinhar, na minha caixa de ferramentas deverão estar coisas necessárias para cozinhar. Mas não precisarei de machados e guindastes. Na outra caixa, de brinquedos, estão todas as coisas que dão prazer: pipas, flautas, estórias, piadas, jogos, brincadeiras, beijos, caquis... Se a coisa ensinada nem é ferramenta e nem é brinquedo, o corpo diz que não serve para nada. Não aprende. Esquece. As crianças “normais”, havendo compreendido que os professores e diretores são mais fortes que elas, por ter o poder de reprovar, submetem-se. Engolem os jilós, as mandiocas cruas e os pedaços de nabo, porque terão de devolvê-los nas provas. Mas logo os vomitam pelo esquecimento. Não foi assim que aconteceu conosco? As crianças e adolescentes com Síndrome de Down simplesmente se recusam a aprender. Elas só aprendem aquilo que é expressão do seu desejo. Entrei numa sala, na “Fundação Síndrome de Down”. Todos estavam concentradíssimos equacionando os elementos necessários para a produção de um cachorro quente. Certamente estavam planejando alguma festa... Numa folha estavam listados: salsicha, pão, vinagrete, mostarda... Entrei no jogo. “Esse cachorro quente de vocês não é de nada. Está faltando a coisa mais importante!” Eles me olharam espantados. Teriam se esquecido de algo? Seu cachorro quente estaria incompleto? Acrescentei: “Falta a pimenta!” Aí seus rostos se abriram num sorriso triunfante. Viraram a folha e me mostraram o que estava escrito na segunda folha: “pimenta”.
Aí, vocês adultos, vão dizer: “Que coisa mais boba estudar um cachorro quente!” Respondo que bobo mesmo é estudar dígrafo, usos da partícula se, os afluentes da margem esquerda do Amazonas e assistir o “Show do Milhão”. Um cachorro quente, um prato de comida, uma sopa: que maravilhosos objetos de estudo. Já pensaram que num cachorro quente se encontra todo um mundo? Querem que eu explique? Não explicarei. Vocês, que se dizem normais e inteligentes, que tratem de pensar e concluir.
A sabedoria das crianças e adolescentes com Síndrome de Down diz: “Dignas de serem sabidas são aquelas coisas que fazem sentido, que têm a ver com a minha vida e os meus desejos!” Mas isso é sabedoria para todo mundo, sabedoria fundamental que se encontra nas crianças e que vai sendo progressivamente perdida à medida que crescemos.
E há o caso delicioso do Nilson que foi eleito “funcionário do mês” no McDonald’s. E não o foi por condescendência, colher-de-chá... Foi por mérito. O Nilson é um elemento conciliador, amigo, que espalha amizade por onde quer que ande... Todos gostam dele e o querem como companheiro.
É preciso devolver as pessoas com Síndrome de Down à vida comum de todos nós. Nós todos habitamos um mesmo mundo. Somos companheiros. É estúpido e injusto segregá-los em espaços e situações fechadas. Claro que vocês já leram a estória da Cinderela – também conhecida como “Gata Borralheira”. Sua madrasta a havia segregado no “borralho”. Não podia frequentar a sala. Todas as estórias são respostas a situações reais. Pois eu acho que, na vida real, a “Gata Borralheira” era uma adolescente com Síndrome de Down de quem mãe e irmãs se envergonhavam. Mas a estória dá uma reviravolta e mostra que ela tinha uma beleza que a madrasta e irmãs não possuíam. E eu sugiro que sua beleza está nessa inteligência infantil, absolutamente honesta, absolutamente comprometida com o desejo que nós, adultos, perdemos ao nos submeter ao jogo das hipocrisias sociais.
Quem quiser saber mais poderá visitar a “Fundação Síndrome de Down”, em Barão Geraldo. É uma instituição maravilhosa! E digo que me comovi ao observar o carinho, inteligência e persistência daqueles que lá trabalham. E andando pelos seus corredores e salas de repente senti que havia lágrimas nos meus olhos: lembrei-me do Guido Ivan de Carvalho que foi um dos seus idealizadores e construtores, juntamente com a Lenir, sua esposa. O Guido não está mais lá. Ficou encantado... Sugeri à Lenir que plantasse, para o Guido, uma árvore, no jardim da Fundação. Se vocês não sabem, na estória original da Cinderela não havia Fada Madrinha. Quem protegia a Cinderela era a sua mãe morta, que continuava a viver sob a forma de uma árvore...
Pensando naquelas crianças e adolescentes lembrei-me de uma afirmação do apóstolo Paulo: “Deus escolheu as coisas tolas desse mundo para confundir os sábios – porque a loucura de Deus é mais sábia que a sabedoria dos homens...” Quem sabe será possível ouvir, naqueles rostos sorridentes, um discreto bater de asas de anjos...
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